Nos últimos tempos, por impedimento legal, fiquei interdita de conduzir. O local onde sou explorada fica relativamente longe da minha morada, pelo que ultimamente tenho que andar de comboio.
A maior parte das pessoas com quem convivo odeiam transportes públicos, pela sua lentidão, pelos atrasos, pela confusão, a falta de conforto mas sobretudo, e do que quase toda a gente se queixa, das pessoas que os frequentam. Algumas são como nós, assíduas no banho, pontuais na higiene oral, com um estilo made in Zara, já que o naco de pão mensal que nos pagam não dá para mais, com educação e dispostas a entregar sempre o bilhete ao revisor sem a desculpa de não sabermos dele e que a próxima é a nossa paragem:"Oh sxô rebizore!!Num chei du meu bilhete...catano...inda agorinha aqui extaba...Mas exta é a minha parage!Oh sxô rebizore!Tenho memo q'ire!!" Sim há alguns como nós que entram mudos e saem ainda mais calados do que entraram. Evitam o contacto visual, já que este pode implicar terem que sorrir ou até mesmo dizer bom dia. Nunca se sabe... Mais vale um gajo ir com os olhitos no chão a contar as pastilhas elásticas ou a ler o jornal que diariamente compramos só para ver as gordas. Sim porque se for preciso perder tempo a ler então que sejam as notas de rodapé do jornal da TVI. Estou fortemente convicta que os jornalistas desse canal procuram cativar por condicionamento, é que passam tantas vezes a mesma coisa que não nos resta outra solucão senão decorar as notícias.
Mas eu pessoalmente até gosto de andar de trem. Gosto de olhar algumas pessoas e dar graças por não ser assim, tal como gosto de ver aquela senhora (que deverá ter a idade da minha linda mãe) a descobrir novos pontos de renda e dar voltas e voltas até o conseguir fazer entre Aveiro( "EXTAXXÃO DE ÁVEIRO") e o humilde apeadeiro de Salreu, também gosto quando vai o casal de surdos mudos a falar em linguagem gestual e invejo-os pois também eu gostaria de esbracejar valentes carvalhadas sem que me chamassem de mal educada ou até mesmo, malcriadona!!!!! Gosto de ver gente da minha humilde idade já com o olhar tão cheio de nada e pensar que talvez o meu seja diferente, ou de olhar uma moça que costuma ir a mandar mensagens e a ligar para dizer a que horas chega a Gaia (impressionante como o faz todos os dias!!Ao fim duma semana era de imaginar que quem quer que a vá buscar já o deva ter decorado). Gosto mesmo de andar de comboio. Ouvir as reclamações porque a composição está atrasada e não há respeito pelos utentes, mas mal entram começam a reclamar que não lhes apetecia nadinha ir trabalhar. Tudo isto em vez de aproveitarem o atraso como uma dádiva para menos 5 minutos no cubículo... Vá-se lá perceber.
Mas há dias atrás conheci o senhor, se a memória não me falha, José Pereira. Pai de 4 filhos. Todos mais ao menos bem, tirando o mais novito que, segundo palavras suas, andou enrabichado por uma moça que lhe fez senão male... Coitado do rapazito. Até eu que só conheci o rebento entre Canelas e Aveiro sei que aquilo que a rapariga lhe fez não se faz a ninguém. O senhor falava muito. Olhava nos olhos do seu interlocutor e não tinha medo que este não fosse o único, já que o tom de voz não era de cochicho, como se estivesse envergonhado,mas sim de homem que sofreu e tem muito que ensinar. Foi graças à sua voz projectada que o conheci. Esteve em Angola muitos anos e era um homem rico. Conhecia muita gente em Aveiro, já q la ia muitas vezes com a mulher. Mas sempre tinha sido um homem do norte. "Sempre vivi no Norte. Sou de Lamego mas fui para Famalicão muito cedo." A senhora que o ia a ouvir tinha um ar fascinado e não parecia enfadada com a situação. As mãos eram grandes e por sinal, teriam passado muito pouco tempo entre canetas, já que o seu ar calejado dava a entender outro tipo de ferramenta de ofício. "Nunca tive medo de trabalhar. Só de ficar doente. Ou que os meus filhos passassem fome,mas graças a Deus...isso nunca aconteceu" Mas que graças a Deus o quê sr. José!!!Graças a si que não teve medo de nada, que fala normalmente no comboio sem vergonha que o ouçam a empregar incorrectamente um verbo (coisa que não aconteceu)!!Graças a si que sempre procurou ser justo lá em Angola com os pretitos, "coitados", que nada tinham para comer!!Graças a si que sempre procurou ser homem e não um rato para quem uma codea de pão é tudo na vida!!Graças a si que não se deixou hipnotizar pelo ritmo da vida!!Foi tudo graças a si!!Orgulhe-se disso!!
E senhor José, se nos voltarmos a ver, quero que conte à senhora do lado, como conheceu a sua senhora, já que de Estarreja a Aveiro é pouco tempo e tive que me vir embora. Mas deixe estar que a juventude não está toda perdida. Também eu concordo consigo quando dizia que o que faz falta hoje em dia é passar necessidades para saber o que a vida custa!!Haviamos todos era de passar fome!!Aí sim!!
Prazer sr. José e até sempre!!!
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